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A história real de uma senhora de 80 anos que toma para si a responsabilidade de lidar com violência observada através de sua janela é vivida com uma atuação tremenda de Fernanda Montenegro, que nos oferece a oportunidade de observar a excelência artística de uma vida dedicada a atuação. Este é o penúltimo filme da atriz antes de sua anunciada aposentadoria.
Resenha
Às vezes basta uma presença forte na tela para que todo um filme se componha ao seu redor. É esse pensamento que fica após uma sessão de Vitória, novo filme de Andrucha Waddington e penúltimo filme de Fernanda Montenegro antes de sua aposentadoria recém anunciada. Baseado na história real de Joana Zeferino Paz, o filme foi gravado antes de seu falecimento em 2023, quando ela ainda estava vivendo em anonimato por questões de segurança, sob o nome de Dona Vitória. Dessa forma, seu nome verdadeiro e aparência real não foram divulgados antes disso. Em seu encerramento, o filme faz questão de trazer essas informações em texto – como é de praxe em dramas biográficos. Isso serve para elevar a figura real de Dona Joana, mas também para justificar o whitewashing acidental da produção ao escalar uma atriz branca para o papel de uma personagem originalmente negra.
Dessa forma, Fernanda Montenegro interpreta Nina, quase uma versão paralela de Joana, criada pela adaptação. Mas o resto dos fatos ainda são levados à tela de forma fiel, nos apresentando a história da mulher idosa que, após viver por décadas num pequeno apartamento em Copacabana próximo à Ladeira dos Tabajaras, decidiu fazer algo sobre o crime a violência que assolava sua vizinhança. Sem poder contar com a ação imediata da polícia, Dona Nina resolve juntar seu dinheiro e comprar uma filmadora. Da janela de sua sala, ela gravou imagens marcantes do dia a dia dos traficantes em uma favela carioca, registrando provas de vários crimes, incluindo assassinato, e o envolvimento de policiais. Assim, ao mesmo tempo em que ela desencadeia uma investigação capaz de derrubar líderes do tráfico e policiais corruptos, ela se torna um alvo desses mesmos criminosos.
A performance de Fernanda é ótima como sempre, fruto desses 80 anos de uma carreira brilhante dedicada à atuação. Mas além disso, ela está completamente confortável no papel, que enquanto lhe permite se aproveitar das fragilidades da idade avançada, também faz um retrato de uma vivência simples e modesta, preenchida por pequenas revoltas e pequenos confortos. É o tipo de papel que ela tira de letra. É quase possível traçar paralelos entre Nina e a Romana, de Eles Não Usam Black Tie, ou a Dora, de Central do Brasil. O fato de estar sendo dirigida pelo genro também ajuda. A zona de conforto pode trazer vantagens.
E a direção de Andrucha é adequada, nos apresentando uma paisagem concreta, feita de estímulos visuais e sonoros. Quando o filme começa, nós ouvimos a cidade antes de vê-la. Uma construção audiovisual que revela um Rio de Janeiro onde Nina aprendeu a navegar e sobreviver através dos anos. A câmera nos torna companheiros da velha senhora enquanto ela caminha por aquelas ruas e vielas, confrontando a grosseria, a truculência e o etarismo de uma sociedade que a subestima casualmente. Tudo isso permite que Vitória, sem grandes façanhas cinematográficas, proporcione pelo menos alguns momentos memoráveis, que já nasceram clássicos – sem querer dar spoilers, um cuspe e uma massagem arrancaram reações maravilhosas da plateia na sessão em que estive.
Mas, mesmo sendo verdade que o filme se forma ao redor da atuação de Fernanda, o resto do elenco está igualmente forte. Alan Rocha, interpretando o repórter Fábio Gusmão, traz em sua presença e em seu olhar o peso da situação em que Dona Nina se meteu, assim como sua preocupação e admiração por ela. Linn da Quebrada cria uma figura ao mesmo tempo insubmissa e apaziguadora em Bibiana, vizinha de Nina. E o jovem Thawan Lucas concede tantas camadas à figura trágica de Marcinho, menino da favela que é tanto vítima quanto engrenagem do crime organizado (a possibilidade de salvá-lo é mais uma força motora na jornada de Nina). Vitória representa, então, mais um exemplo perfeito do caráter coletivo do cinema. Fernanda Montenegro pode ser seu maior atrativo e principal recurso, mas ainda é um filme cujas muitas partes trabalham em harmonia para formar um todo.
https://www.youtube.com/watch?v=3Zr6YJ02r5g